A GIRIA DOS VAGABUNDOS
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Publicado na Folha da Manhã, domingo, 10 de agosto de 1947
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Prof. Silveira Bueno
Em toda as partes do mundo a gíria dos vagabundos e dos ladrões é das mais estudadas. Apresenta um carater internacional, arcaico e hermético: prova o primeiro característico a organização mundial da classe e o comercio constante de individuos, chefes e dirigentes, cada qual a trazer a sua contribuição própria. Prova o segundo a antiguidade da associação, diriamos hoje, da sindicalização de tais operarios. Prova o terceiro o cuidado de manter os iniciados a coberto de estranhos, possivelmente, perigosos a seus intuitos. Dos paises europeus os que mais concorreram foram a Italia, a Espanha e a França. Mais tarde apareceram as contribuições da Alemanha e da Inglaterra. O que me leva a estudar esta giria não é somente a curiosidade de sua linguagem de grupo social, mas, sobretudo, o intuito de explicar o aparecimento e a significação de certos termos, já hoje, correntes na lingua geral do país, que vieram, sem duvida alguma, do contato com o argot dos mendigos e dos malfeitores. Já em outros artigos me tenho ocupado destes assuntos e quero trazer ao conhecimento dos interessados mais este, resultado de novas pesquisas e leituras. Não faz muito tempo que apareceu entre nós a palavra CAMUFLAR, no sentido de ocultar, disfarçar para não ser reconhecido. Atribuíram alguns à guerra de 1914, época em que se começou a divulgar tal termo. É de origem e de data muito antiga, pertencendo ao argot dos malfeitores italianos, criado no norte da Italia, no dialeto franco-provençal, CAMUFFARE e depois levado à França CAMOUFLER. Daqui certamente foi que nos chegou, dando-se como galicismo. A historia da palavra é mais longa do que isto: se o termo apareceu no norte da Italia, vinha já de epoca muito anterior, da Alemanha; a raiz CA é o que resta de CAPO, cabeça, em italiano; mas MUFFARE forma-se de MUF, germânico, que se encontra no moderno MUFFELEN, revestir, enrolar, cobrir, vender e no inglês MUFFLE, no francês MOUFLE. Já no latim medieval apareceu a forma MUFFULA, especie de luva, de guante. Retomando, pois, os elementos: CA + MUFFARE, significa o italiano: COBERTA DE CABEÇA. O intuito era esconder, ocultar, para não ser conhecido. Com esta significação é que pertence ao argot dos malfeitores. Muito mais nova é a palavra BAITA, sinónimo de grande, imenso, enorme: um BAITA homem, uma BAITA mulher, etc. Vamos encontrar a mesma voz na gíria dos gatunos franceses, vindo tambem do norte da Itália, mas com pronúncia um pouco diversa: dizem BAITA, acentuando o I, dando, portanto, três silabas ao vocabulario: BA + I + TA. O celebre linguista italiano ASCOLI, estudando os dialetos do norte da Italia, que muito se assemelham aos do sul da França, e por isto, deu o nome de franco-provençais, explica o termo BAITA: é o mesmo que CASA. Mas como foi que CASA, isto é, BAITA, passou a significar GRANDE, ENORME? Muito facilmente: recordem-se os leitores das nossas experiências semelhantes; É UM BONDE! É UM BARCO! Ouvimos constantemente tais expressões comparativas: "uma mentira do tamanho de um bonde; um bolo que era um bonde grande!" Do mesmo modo, tomaram BAITA (casa) por termo de comparação e o vocabulo passou a significar grande, enorme. Daí o dizermos ainda agora: um BAITA doce! E notem os leitores que a palavra não tem género, servindo para qualquer deles: um baita homem, uma baita mulher. Entre os motoristas, militares e pessoas que já passaram pela caserna, designa-se o revolver por BERRO, BERRANTE, BERRADOR. É o que tambem se passa em italiano e francês: ABBAIATO, BAYAFE, de ABBAIARE, ABOYER, latir, berrar. O nosso termo é um decalque. BOLINAR é outro termo e dos mais interessantes: já encontrei a explicação de que vinha da linguagem náutica, IR, NAVEGAR À BOLINA, isto é, em zigue-zague, não em linha reta e daqui, sem destino certo à aventura. Este significado explicaria muito bem o atual sentido do verbo, penso que muito conhecido dois leitores. Mas a origem é outra: provem do italiano BOLINO e tambem escrito BURINO, instrumento de ferro e aço, o nosso buril, que serve para limar, entalhar, etc. Na giria dos ladrões passou a designar, primeiramente, FURAR PAREDE para roubar e secundariamente, o proprio roubo e depois o furto. Nesse sentido, numa multidão, num cinema, num teatro, numa igreja, etc., o ladrão devia, antes de tudo, apalpar a vítima para ver onde estava a carteira, a jóia, o objeto que desejavam furtar: é justamente o significado de BOLINA, BOLINAR, na moderna gíria brasileira. Não me parece, portanto, que venha da lingua nautica.
Há um guarda de jardim, meu conhecido, que sempre tem consigo um pedaço de pão para mastigar. Cada vez que lhe falo do apetite, responde-me sempre: "Enquanto estou MORFANDO, estou vivo". MORFAR, comer,é palavra muito empregada pelo nosso povo. Outros mais chegados à policia, empregam MORFAR e tambem MANJAR com o significado de vigiar, observar os atos de alguem suspeito. Chegou-nos a palavra na França, mas foi feita na Italia, com elementos do alemão antigo: MORPFEN, comer, apresentar e já em holandês, MORFEN. Ambas estas formas supõem MURF, boca e daqui o italiano MORFIRE, MORFIA, SMORFIA e o francês MORFIER. Adaptou-se o verbo ao português e fez-se MORFAR, COMER.
Outra palavra que nos veio da mesma procedencia é ESGANAR, estrangular e também esfomeado, faminto: fulano é esganado por doce; fulano foi esganado pelo assaltante, etc. O italiano SCANNARE forma-se de S-CANN-ARE onde se encontra a palavra CANNA como sinónimo de GARGANTA. Basta compreender os termos para se estender o vocabulario todo.
TRUCO, TRUCAR, no sentido de enganar, primeiramente, no jogo, TRUCAR em falso e depois em sentido geral, TRUQUES, golpes, recursos, expedientes. Do italiano TRUCCARE, TRUCCO, foi divulgado pelos vagabundos, mas, a palavra prende-se ao alemão DRUCK. Truccare significa TROCAR, berganhar, depois ENGANAR, mormente no jogo. No sentido de ventosidade é puramente onomatopaíco. Do jogo veio-nos tambem CASSINO: o italiano CASINO, cuja pronuncia é CAZINO, certamente, por causa dos dialetos do norte, aparece já nas obras de Rabelais sob a forma de CASSINE. No dialeto dos malfeitores franceses ainda conserva a sibilante surda: CASSINO o que aduzo para corrigir o ensino anteriormente dado, atribuindo a pronuncia CASSINO a uma influência espanhola. É mais antiga a palavra, anterior ainda à colonização da America do Sul. Em outra oportunidade voltarei ao assunto.
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Destino: chegar vivos a junho e passar nas provas
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