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Acidentes de trabalho

1. Introdução à noção de acidente

1Os acidentes sempre zeram e sempre farão parte dos eventos ocorridos em sociedade, e isto pode explicar, em parte, o porquê de eles poderem ser conside­rados como um problema social. É verdade que os acidentes podem ocorrer em todos os lugares (escolas, casa, locais de trabalho, estradas, etc.), em diversas circunstâncias, e derivar de múltiplas causas. Esta fatalidade social à qual todos nós estamos sujeitos depende dos riscos e dos perigos que corremos ao longo das nossas vidas. Apesar de alguns acidentes serem dramáticos nas consequên­cias que produzem, eles são por definição eventos relativamente raros, visto que representam desvios à normalidade. Em traços gerais, julgamos que não é possível prevenir e evitar todos os acidentes, mas estamos convictos de que as investigações sobre acidentes podem ajudar a prevenir alguns (Areosa, 2009a).
2Os acidentes são eventos que ocorrem de forma repentina, mas às suas causas podem estar associados, simultaneamente, factores sincrónicos e diacrónicos. Em sentido etimológico, o termo “acidente” significa um qualquer evento não plane­ado, fortuito, imprevisto e fruto do acaso. Na linguagem do senso comum um aci­dente é entendido como algo nefasto, maléfico e aleatório que provoca danos ou prejuízos. Desta definição preliminar podemos diagnosticar a existência de uma impossibilidade empírica para controlar e antever todas as situações passíveis de causar acidentes. Até meados do século XVIII a noção ocidental de acidente (tal como a noção de risco) esteve associada a manifestações divinas; até este período as grandes catástrofes eram vistas como fruto da vontade dos Deuses. A laicização da catástrofe (Theys, 1987) começa a emergir após o terramoto de Lisboa de 1755 (Areosa, 2008) e surge como um pensamento fracturante dentro da visão social dominante acerca dos acidentes. A partir deste período os acidentes come­çam também a ser entendidos como resultado de condições naturais.
3Ainda numa perspectiva histórica, facilmente se podem verificar os inegáveis benefícios que a Revolução Industrial veio trazer para as sociedades modernas. Contudo, este “novo” período acarretou também alguns efeitos sociais adver­sos, nomeadamente ao nível da “produção” de acidentes. As novas formas de organização do trabalho, fruto da Revolução Industrial, são, em grande medida, responsáveis pela sinistralidade laboral massiva e sistemática que caracterizou
4o mundo do trabalho nos últimos dois séculos (Pinto, 1996). É verdade que aos empregadores (em parte produtores dos discursos dominantes) interessa refutar qualquer responsabilidade sobre os acidentes de trabalho. Por isso, a sua visão quase sempre assentou no pressuposto da inevitabilidade dos acidentes (o designado preço a pagar pelo desenvolvimento industrial) ou a imprudência e respectiva culpabilização dos próprios trabalhadores (Español, 2001).
5A partir da Revolução Industrial os acidentes passaram a incorporar uma nova dimensão de peso: a tecnologia. A interacção do homem com a tecno­logia possibilitou a emergência de novas formas de acidentes. Podemos afir­mar que neste período houve uma transformação histórica na tipologia dos acidentes. Outra transformação importante nesta tipologia ocorreu a partir da segunda metade do século XX, através da emergência dos acidentes maiores (Turner, 1978; LaPorte e Consolini, 1991; Perrow, 1999; Reason, 2008; Burns e Machado, 2009). A título de exemplo, Marx e Engels foram dos primeiros autores a debater as condições adversas para a saúde e segurança dos trabalha­dores durante a sua época. A reflexão de Marx (1966) incidiu sobre a questão da tecnologia devido a esta poder gerar a diminuição da necessidade de mão--de-obra. Após a emergência do taylorismo e da organização científica do traba­lho os operários não perderam apenas a sua profissão, enquanto arte ou ofício (no sentido artesanal do termo), perderam também o seu próprio estilo e ritmo de trabalho, bem como o controlo sobre os seus movimentos. De certo modo, foram transformados em autómatos direccionados quase exclusivamente para maximizar a produção.
6Desde o dealbar da Revolução Industrial até aos dias de hoje verificaram-se profundas alterações na incidência dos acidentes, devido a múltiplos factores. Enquanto no início da Revolução Industrial os acidentes de trabalho com mineiros eram muito frequentes, actualmente encontramos esta característica nos operários da construção civil. Assim, as transformações no mundo do tra­balho deram também origem à transformação na tipologia dos acidentes em contexto laboral.
7Os discursos leigos sobre os acidentes foram sendo reajustados ao longo das últimas décadas (independentemente de serem produzidos pelos próprios protagonistas ou por simples observadores), mas continuam fortemente domi­nados pela ideia de que os acidentes são fenómenos isolados, descontínuos, que surgem de forma imprevisível e, por isso mesmo, são insusceptíveis de apreen­são racional que vá muito para além de uma análise casuística. Pinto (1996) sus­tenta que esta visão sobre a sinistralidade laboral é bastante redutora, visto que no seu estudo sobre os acidentes de trabalho na construção civil pôde encontrar determinadas regularidades e permanências que contrariam estes pressupostos. Os acidentes de trabalho não são acontecimentos passíveis de ocorrer numa espécie de “vácuo social”; pelo contrário, eles percorrem globalmente o mundo do trabalho, o seu espaço de produção e de existência social, embora de forma não homogénea. Parece-nos indiscutível que os acidentes de trabalho podem ser influenciados por factores socioculturais. Para além disso, as percepções dos trabalhadores sobre os acidentes de trabalho, mesmo que, por vezes, algo dis­torcidas em termos de rigor e objectividade, não deixam de ser uma dimensão essencial para a compreensão e entendimento deste problema.
Por outras palavras: as evidências e visões sobre os acidentes de trabalho partilhadas pelos actores sociais são sempre, independentemente dos equívocos lógico-intelectuais em que assentam, uma componente essencial do sistema de determinações da sinistralidade concreta (e de resto, também, um dos elos mais resistentes a intervenções de natureza preventiva neste domínio). Nem de outra forma se encontraria justificação para invocar a “dimensão cultural” dos aciden­tes de trabalho. (Pinto, 1996: 95)
8O problema dos acidentes de trabalho pode ser visto a partir de duas lógi­cas distintas: a lógica preventiva e a da reparação. À refutação, por parte de alguns sistemas jurídicos oficiais, da concepção dos acidentes enquanto eventos exclusivamente imprevisíveis ou fruto da imprudência dos trabalhadores, fi cou subjacente a ideia da responsabilidade pelo risco gerado nos locais de trabalho (o que veio abrir espaço para outros actores responsáveis pelos sinistros); este foi um marco histórico para os movimentos sociais do século XIX que lutavam por melhores condições de trabalho e maior justiça social no âmbito laboral. Estes movimentos ocorreram essencialmente em França, Inglaterra e Estados Unidos. A criação de seguros obrigatórios para os acidentes de trabalho foi, talvez, a última grande conquista para uma maior equidade social em relação aos acidentes de trabalho. Como afi rma Pinto:
O caso francês pode aliás armar-se que, já a partir de 1841, com a in exão da jurisprudência no sentido de, salvo prova em contrário, se imputar à entidade patronal responsabilidades pela indemnização dos acidentados, foram concedi­dos aos assalariados alguns instrumentos básicos de defesa nesta matéria. Mesmo assim, e como nota Remi Lenoir, “para além das dificuldades que o assalariado encontrava para aduzir a prova da culpabilidade do empregador, por força do desaparecimento dos indícios e do silêncio das testemunhas, sobrevinham inúme­ros acidentes sem que se tornasse possível imputar uma ‘falta’ a quem quer que fosse, de modo que a maior parte das vítimas eram privadas de qualquer espécie de reparação”. (Pinto, 1996: 104)
9Segundo Ewald (in Pinto, 1996: 105), se considerarmos que os acidentes de trabalho resultam do desenvolvimento tecnológico e dos processos de industrialização, então, não devem ser os empregadores os principais responsáveis pelos acidentes, mas antes, a ciência, a técnica e o progresso. Naturalmente que esta afirmação não está isenta de controvérsia, mas até podemos considerar que esta perspectiva traduz alguma veracidade. Na mesma linha de pensamento, Ulrich Beck (1992) e Charles Perrow (1999) corroboram a ideia de que a ciência e a tecnologia acarretam novas formas de risco para a modernidade, passíveis de originar acidentes ou efeitos devastadores.
10Os acidentes tendem a ser eventos localizados no tempo e no espaço e emergem a partir de um contexto “histórico” específico. Segundo Pinto (1996), é difícil recusar a ideia de que os acidentes de trabalho se encontram profun­damente interligados com as características dos processos de trabalho. Assim, os acidentes podem ser vistos como uma variação das situações normais de trabalho. Na perspectiva de Furnham (1992: 258) os acidentes, por vezes, são definidos através das suas consequências, em vez de serem procurados os seus antecedentes. Todavia, tentar encontrar as causas dos acidentes é um aspecto fundamental, sabendo que estes podem ter origens muito distintas. Furnham afirma que a compreensão dos acidentes deve estar centrada também em certos detalhes, nomeadamente, a descrição da situação, processos ou circunstâncias e aspectos pessoais das vítimas. Porém, é pertinente ter em linha de conta que quase todos os acidentes apresentam algumas “zonas sombrias” de difícil com­preensão, o que dificulta a sua análise e prevenção. Aliás, Hollnagel (2004) preconiza que nunca se consegue descobrir completamente todos os factores subjacentes aos acidentes.
11As ciências sociais vieram, de algum modo, tentar desmistificar a essência da etimologia do acidente, à qual estava subjacente a ideia quase exclusiva de eventos aleatórios ou fortuitos. Embora estas componentes possam contribuir parcialmente para a explicação dos sinistros, existem outras dimensões que não podem ser esquecidas. É por este motivo que Dwyer e Elgstrand (2009) defen­dem que é necessário um novo paradigma para a segurança no trabalho, onde sejam incluídos aspectos de natureza social. Para além disso, ainda subsistem, actualmente, alguns enviesamentos (por defeito) na contabilização do número de acidentes de trabalho. Esta situação leva Pinto (1996: 95) a interrogar-se se esta questão é um problema metodológico ou político.

2. Revisitando a teoria sociológica de Dwyer para os acidentes de trabalho

12O entendimento sobre os múltiplos factores que podem contribuir para os acidentes tem sofrido signicativas alterações nas últimas duas ou três décadas. Os acidentes deixaram de ser concebidos apenas como fenómenos fortuitos e individuais, passando também a ser integrados na sua análise factores sociais e organizacionais (Hovden, Albrechtsen e Herrera, 2010). É verdade que os acidentes são eventos expectáveis no mundo do trabalho, tendo em conta a extraordinária diversidade de riscos que os diferentes tipos de trabalho podem incorporar. A história dos acidentes de trabalho tem demonstrado que, à medida que se vão reduzindo certos tipos de acidentes, também vão emergindo novos tipos de sinistralidade (Dwyer, 2000a). Qualquer local de trabalho implica a presença de determinados perigos, variáveis de organização para organização. Deste modo, os acidentes de trabalho decorrem da presença de perigos e da exposição dos trabalhadores aos riscos laborais (Areosa, 2003, 2005). Para além disso, alguns riscos “insuspeitos” nos locais de trabalho são susceptíveis de poder causar graves acidentes (Granjo, 2004). É pertinente lembrar que os acidentes podem acarretar problemas graves para os trabalhadores (lesões per­manentes ou a própria morte), mas as consequências destes eventos vão muito para além do drama inerente ao próprio trabalhador sinistrado, pois podem também afectar, ainda que indirectamente, as suas famílias, os seus colegas de trabalho, os seus empregadores e a sociedade em geral.
  • 1 Um dos objectivos deste texto é divulgar a teoria dos acidentes de Dwyer, pois esta abordagem (aind (...)
13No início da década de setenta, Hale e Hale (1972) apelavam à urgente necessidade de criar novas teorias e novos métodos para compreender o fenó­meno dos acidentes. Dentro da teoria social existem alguns modelos de elevada relevância para a compreensão dos acidentes, particularmente o paradigma sociotécnico dos desastres de origem humana, elaborado por Turner (1978); a abordagem sistémica dos acidentes, onde destacamos a perspectiva dos “aci-dentes normais” preconizada por Perrow (1999); o modelo das High Reliability Organizations protagonizado, entre outros, por Weick (1987), Roberts (1990) e Weick e Stucliffe (2007); e, finalmente, o modelo do erro humano e dos aci­dentes organizacionais, apresentado por Reason (1990, 1997, 2008). Porém, o referido apelo efectuado por Hale e Hale (1972) motivou, em parte, a ela­boração de uma teoria sociológica para compreender os acidentes de trabalho (Dwyer, 1989, 1991, 2000b, 2006).1Para dar sequência a esta demanda, foram observadas diversas relações sociais nos locais de trabalho, por vezes, separadas analiticamente enquanto objecto de estudo, mas profundamente interligadas ao nível empírico. A tese central da teoria sociológica de Dwyer preconiza que os acidentes de trabalho são, em grande medida, o resultado de relações sociais. De certo modo, podemos afirmar que este modelo (concebido essencialmente como fruto de relações sociais) está ancorado quer na perspectiva de Durkheim, na qual se defende que o social deve ser explicado pelo social, quer na perspec­tiva fenomenológica de Schutz, derivada da sociologia Weberiana (cf. Dwyer, 2006).
  • 2 As referidas hipóteses de análise são as seguintes: “1. As relações sociais de trabalho produzem ac (...)
14No âmago da teoria sociológica de Dwyer existem, essencialmente, três níveis sociais com capacidade para explicar o desenvolvimento das relações entre empregadores e trabalhadores – a recompensa, o comando e o organiza­cional – e, por arrastamento, do próprio fenómeno dos acidentes de trabalho; a estes três níveis Dwyer acrescenta um quarto, de carácter não-social, designado como indivíduo-membro. A importância de cada um destes níveis é construída nos próprios locais de trabalho, não é dada antecipadamente; logo, a importân­cia de um nível num determinado contexto não significa que ele tenha o mesmo “peso” noutra realidade sociolaboral distinta. Em termos metodológicos, são testadas quatro hipóteses de análise2 a partir de uma observação directa e par­ticipante, onde é privilegiada uma certa dialéctica “negocial” entre o conheci­mento do especialista (investigador) e o saber prático dos sujeitos observados (objecto de estudo). Esta situação caracteriza, em parte, a originalidade e perti­nência da pesquisa sociológica protagonizada por Dwyer (1991, 2006).
15Nesta perspectiva, os acidentes de trabalho dependem da relação directa ou indirecta dos trabalhadores com os riscos. Os acidentes são também vistos como uma situação de erro específico, produzido organizacionalmente, fruto do fun­cionamento e interacção das quatro dimensões referidas na figura 1. Nesta fi gura foi representado o modelo que concebe como as relações sociais de trabalho e o nível indivíduo-membro podem interagir de modo a produzir acidentes.
Figura 1 – A relação dos níveis nos locais de trabalho
Figura 1 – A relação dos níveis nos locais de trabalho
Fonte: Adaptado de Dwyer (2006: 142).
16Vejamos agora com maior detalhe cada um dos quatro níveis concebidos por Dwyer na sua teoria sociológica dos acidentes de trabalho. O primeiro nível
17– a recompensa – está relacionado com a utilização de incentivos para gerir a relação das pessoas com o seu trabalho. Estes incentivos podem ser subdivididos em três factores distintos: 1) materiais ou financeiros relacionados com a inten­sificação do trabalho; 2) ampliação (prolongamento) do trabalho, por exemplo, através do recurso a horas extraordinárias; 3) recompensas simbólicas.
18Os incentivos financeiros que visam o aumento da produtividade dão nor­malmente origem à execução de tarefas de forma mais rápida (aumentando simultaneamente o cansaço dos trabalhadores e o número de erros ou falhas) em detrimento, por exemplo, do cumprimento das normas e regras de segurança estabelecidas para aquela tarefa. As recompensas materiais podem também influenciar a aceitação da execução de tarefas de maior risco, a troco de dinheiro, pelos trabalhadores. Existe uma certa tendência para os problemas resultantes dos incentivos serem escamoteados, devido à aparente relação mutualista que parece resultar para empregadores e trabalhadores; ou seja, os primeiros vêem a sua produção aumentada, enquanto os segundos vêem os seus salários alarga­dos. Todavia, os custos subjacentes a esta prática estão situados, por exemplo, no aumento do número de acidentes (McKelvey et al., 1973 in Dwyer, 2006: 153) e em todas as consequências que daí advêm. Posteriormente, observou-se que esta prática acarretava ainda outros problemas. Uma das desvantagens para os empregadores que recorriam à utilização de incentivos económicos para o aumento da produção era que este factor acabava por conduzir a uma certa rejeição pelos trabalhadores das tarefas que não seriam alvo de incentivos. Este modelo de gestão provocava também o “corte” de algumas etapas suposta­mente consideradas dispensáveis, ou a diminuição da produtividade, quando as metas para obter os incentivos económicos eram demasiado exigentes. Para ilustrar esta situação, verifica-se, por exemplo, que “andaimes são erguidos e não adequadamente fixados; máquinas que requerem manutenção são coloca­das em funcionamento sempre que reparos preventivos implicam interrupção do trabalho que leve a reduções no pagamento; restos são deixados para outros limparem; o carvão subterrâneo é extraído à custa de escorar o teto; cálculos da produção fraudados” (Dwyer, 2006: 147).
19A ampliação do trabalho é uma relação social diferente da anterior, dado que não está assente na intensificação do esforço, mas sim no prolongamento do tempo de trabalho. Isto significa que os trabalhadores podem obter melhores salários através do aumento da sua carga horária (quanto maior for o número de horas extraordinárias trabalhadas, maior será o salário obtido). Por parte dos empregadores o recurso à ampliação do trabalho pode dever-se à escassez de trabalhadores, a prazos apertados para a entrega da sua produção ou a eleva­dos custos na contratação de outros trabalhadores. Porém, o prolongamento do horário de trabalho torna os trabalhadores mais vulneráveis a sofrerem aciden­tes de trabalho, devido ao cansaço acumulado na jornada de trabalho (Areosa, 2010).
20As recompensas simbólicas estão articuladas com dimensões culturais dos próprios trabalhadores, tais como o prestígio, o estatuto social, a estima ou o cumprimento de “rituais” de integração no grupo ao qual se quer pertencer. Alguns antropólogos estudaram a questão das recompensas simbólicas no tra­balho e verificaram, por exemplo, que os índios norte-americanos que traba­lharam na construção de arranha-céus executavam o seu trabalho sem a menor segurança laboral. Esta situação devia-se à aceitação dos perigos por parte destes actores sociais, visto que a deliberada exposição ao risco era entendida como um acto heróico e, simultaneamente, como um mecanismo de reforço dos seus valores culturais tradicionais de guerreiros (bravura, audácia, coragem, etc.), por contraposição aos valores tendencialmente preventivos das sociedades modernas.
21Todas as situações descritas anteriormente podem resultar num aumento do número de acidentes de trabalho, considerando a aceitação de riscos mais elevados fomentada pelos três tipos de relações sociais no nível de recompensa (material, ampliação do trabalho e recompensa simbólica). Aliás, Dwyer (2006) cita também outros estudos onde se verifica que existe uma relação directa entre o aumento de horas trabalhadas e o aumento do número de acidentes de tra­balho.
22O segundo nível da teoria sociológica dos acidentes de trabalho, designado por comando, está relacionado com a forma como os empregadores tentam gerir as relações dos trabalhadores com o seu trabalho, através de um controlo directo ou indirecto sobre as suas acções. Regra geral, os trabalhadores tentam resistir a formas de controlo mais “apertadas” (que tendem a inibir a sua auto­nomia). O conflito latente entre empregadores e trabalhadores pode ser expli­cado, em parte, através do exercício desta forma de poder e de dominação. De certo modo, podemos afirmar que para contrabalançar um poder dominante do empregador existe um contrapoder dominado dos trabalhadores e este último pode assumir formas e estratégias muito diversificadas.
23A dinâmica do nível comando é também ela produzida através de três tipos de relações sociais distintas: 1) o autoritarismo, 2) a desintegração do grupo de trabalho e 3) a servidão voluntária. As estratégias de autoritarismo utilizadas por alguns empregadores são concebidas não tanto como um mecanismo de defesa da segurança dos trabalhadores, mas antes como uma tentativa delibe­rada para garantir que o trabalho seja executado de forma célere. Em diversas pesquisas de campo, na área da construção civil francesa, verificou-se a existên­cia de um número significativo de trabalhadores “insatisfeitos”, devido ao seu trabalho ser gerido pelo autoritarismo. Estes trabalhadores compreendiam que este factor era responsável por uma parte dos acidentes ocorridos no seu local de trabalho (Dwyer, 1989: 29). Todavia, se um trabalhador reclamar das más condições de trabalho às quais está sujeito, o seu empregador pode encontrar determinados enredos para terminar esta relação contratual (despedimento). Porém, se as condições de trabalho são más e não forem corrigidas, provavel­mente irá haver mais acidentes; este é um dos aspectos em que se torna visível a estreita relação entre autoritarismo e acidentes de trabalho, ou seja, o autorita­rismo pode produzir acidentes (Dwyer, 2006: 174).
24A desintegração do grupo de trabalho pode ser efectuada, por exemplo, através de uma elevada rotatividade dos trabalhadores na empresa. Os empre­gadores procuram eliminar as ameaças que os grupos de trabalho coesos ou integrados podem acarretar para si, no entanto, utilizam a desintegração sem que isso impeça o desenvolvimento das tarefas laborais. A desintegração do grupo de trabalho pode resultar em acidentes quando as pessoas que trabalham em tarefas que requerem um trabalho interdependente não se compreendem. A alta rotatividade de trabalhadores e os grupos onde as pessoas não falam a mesma língua são alguns factores que produzem esta relação social. É perti­nente lembrar que um grupo de trabalho integrado pode constituir a base de resistência dos trabalhadores à imposição de trabalhos perigosos.
25A servidão voluntária é a relação social que está relacionada com a exe­cução de trabalhos difíceis ou perigosos, sem que haja qualquer oposição por parte dos trabalhadores que não recebem recompensas extraordinárias por esse tipo de trabalhos. De certo modo, é uma aceitação quase fatalista das dificul­dades do trabalho e dos riscos laborais mais elevados, na medida em que os trabalhadores têm plena consciência dessas dificuldades ou riscos. Ambientes de trabalho insalubres podem ser dominados por esta relação. Para facilitar a subserviência, os empregadores podem recorrer a trabalhadores que eles julgam mais propensos à servilidade, particularmente, mulheres, deficientes ou imigran­tes ilegais. Em resumo, verifica-se que, nesta relação social, as acções dos traba­lhadores estão em harmonia com os objectivos do empregador (Dwyer, 2006: 167); mas, apesar de este tipo de trabalhadores ser facilmente manipulável, esta política não está isenta de desvantagens para o empregador, pois promove a excessiva passividade na execução do trabalho.
26Nesta teoria sociológica destaca-se ainda o papel positivo para a prevenção de acidentes que alguns sindicatos podem desempenhar, ao combaterem dentro das empresas estes três tipos de relações sociais (autoritarismo, desintegração do grupo de trabalho e servidão voluntária). As relações que se estabelecem entre trabalhadores e hierarquias são um aspecto decisivo nas relações sociais de tra­balho, particularmente na forma de dirigir a execução do trabalho. Segundo Freire (1991), os encarregados e capatazes da construção civil, enquanto agen­tes de comando de “primeira linha” (hierarquia directa), podem ter um papel importante no aumento ou diminuição do número de acidentes de trabalho, devido ao papel específico que desempenham dentro das organizações. Se a sua sensibilidade para os temas da segurança no trabalho for signifi cativa, o poder e a autoridade inerentes ao seu cargo podem constituir-se como factores inibidores para os acidentes. Aliás, esta perspectiva vai ao encontro de um dos dez axiomas da segurança industrial, apresentados por Heinrich (1931), que defende que os supervisores e capatazes são agentes-chave para a prevenção de acidentes.
27Dwyer define o nível comando, em grande medida, por relações de poder. Segundo esta perspectiva, a utilização do poder serve para combater os compor­tamentos considerados indesejados e tanto pode ser usado pelo empregador (e respectiva cadeia hierárquica), como pelos próprios trabalhadores (entre pares). O poder dentro das relações sociais pode ser utilizado na prevenção de aciden­tes, por exemplo, através da punição de práticas e comportamentos defi nidos como inseguros. No entanto, algumas pesquisas indicam que as medidas dis-ciplinares são capazes de reduzir mais o registo formal de acidentes do que os próprios acidentes (Dwyer, 2006: 185). Este último aspecto é importante, visto que tem subjacente o medo que os trabalhadores têm de serem punidos disci­plinarmente por sofrerem acidentes. Este facto pode levá-los a não os declarar. Para evitar situações desta natureza algumas organizações preferem transferir a responsabilidade da vigilância para os próprios trabalhadores. Esta estratégia é designada como autocomando, ou seja, são os próprios pares que impõem sanções àqueles que agem de forma perigosa. Alguns estudos (cf. Dwyer, 2006) sugerem que a maioria dos trabalhadores tem preferência pelo modelo de auto­comando, em detrimento de programas de segurança organizados pela empresa. Todavia, ainda não existem estudos suficientes para demonstrar que o modelo de autocomando seja, no geral, mais efi caz na prevenção de acidentes.
28O terceiro nível apresentado na teoria sociológica de Dwyer (2006) é desig­nado por organizacional. Neste nível é possível identificar três tipos distintos de relações sociais: 1) a subqualificação; 2) a rotina; e 3) a desorganização. Na subqualificação pretende-se observar se o tipo de conhecimento dos trabalhado­res sobre as suas tarefas é insuficiente, visto que a falta de conhecimento pode dar origem a uma incapacidade para executar as tarefas laborais em segurança. Por sua vez, esta incapacidade pode depender da falta de formação específi ca ou de um enviesamento na capacidade de tradução do conhecimento formal em conhecimento prático.
29A introdução de novas técnicas e/ou tecnologias nos locais de trabalho gera, potencialmente, um novo factor de risco (Areosa, 2009b), que se pode traduzir num aumento da ocorrência de acidentes. A génese destes acidentes pode ser encontrada numa ruptura entre a experiência e as qualificações de tra­balho, desenvolvida nas funções ou tarefas anteriores, e na inexperiência e falta de qualificações perante a nova situação de trabalho. Nestes casos os trabalha­dores ainda não desenvolveram os mecanismos necessários para “dominar” os novos riscos, ou seja, ainda não habituaram o seu corpo ou os seus conheci­mentos às novas situações de riscos, resultantes das alterações dos seus locais de trabalho (Pinto, 1996).
  • 3 Nos antípodas desta teoria surgem outras teorias que defendem que a ultrafamiliaridade com algumas (...)
30Uma parte significativa da rotinização do trabalho está associada à organi­zação científica do trabalho, isto é, devido ao avanço dos princípios de gestão tayloristas e fordistas. Isto resultou de uma semi-automatização e simplifi cação do trabalho, que acarretou diversas consequências, particularmente a rotiniza­ção das tarefas para os trabalhadores menos qualificados. A literatura sobre as percepções de riscos (cf. Areosa, 2007, 2009c) refere que as tarefas executadas com pouca frequência são mais susceptíveis de originar acidentes3; isto pode estar relacionado com a falta de determinados hábitos, com a ausência de adap­tação perante determinados riscos ou ainda com a falta de qualifi cações. Para compreender alguns tipos de acidentes é ainda importante considerar as estraté­gias de gestão cognitiva dos trabalhadores (Amalberti, 1996) ou a questão dos gestos voluntários e involuntários, particularmente em trabalhos monótonos e cadenciados. Se um trabalhador de uma linha de montagem é excepcionalmente confrontado com uma nova situação de trabalho, ele até pode compreendê-la, mas o designado refl exo condicionado anterior continua e isso pode explicar alguns tipos de acidentes. Dwyer (2006) define este tipo de acidentes como resultado de uma relação social do trabalho de rotina.
31A literatura sobre acidentes tem vindo a demonstrar que a execução de tarefas designadas de rotina é passível de gerar algumas “armadilhas cognitivas” aos trabalhadores que operam nos sistemas. Estas armadilhas podem acontecer em qualquer tipo de trabalho (quer em situações relativamente simples, quer em situações complexas). Reason e Hobbs (2003) afirmam que a familiaridade com determinadas situações pode conduzir o nosso comportamento através de certos automatismos de rotina. A experiência em executar determinadas tarefas pode dar origem a que os trabalhadores tendam a reduzir o seu esforço mental, actuando como se tivessem accionado uma espécie de piloto automático. Assim, os seus saberes de rotina podem, por vezes, conduzir as suas acções e isto é susceptível de se tornar perigoso, pois os trabalhadores podem actuar de forma contrária à que pretendiam.
32A terceira relação apontada neste nível é a desorganização, que pode mani­festar-se de diversas formas. Regra geral, quando o conhecimento inerente a uma determinada tarefa não é transmitido de forma adequada à pessoa que entra em contacto com essa mesma tarefa, podemos afirmar que esse traba­lho é administrado por meio de uma relação social de desorganização. Outro exemplo desta relação pode ser identificado quando o próprio empregador efec­tua uma concepção “defeituosa” ou inadequada da tarefa que irá ser execu­tada pelo trabalhador. A falta de manutenção de máquinas, equipamentos ou infra-estruturas, a falta de limpeza e a desarrumação dos locais de trabalho são também factores que geram desorganização. Um controlo desadequado sobre o efectivo cumprimento das regras, normas e procedimentos de trabalho (falta de comando) contribui para produzir a desorganização. Tal como afirma Dwyer:
Frequentemente a desorganização introduz novos problemas no processo produtivo. No caso de quebra de equipamentos e em situações semelhantes, observa-se que, muitas vezes, os trabalhadores atuam fora de suas áreas especia­lizadas para garantir a produção. Modificam as suas tarefas para fazer isso e, a partir de então, seu trabalho pode passar a ser gerenciado por uma subqualifi ­cação. Nas minas de ferro francesas, Defoin encontrou índices de acidentes, nas tarefas de manutenção, quatro vezes maiores do que no trabalho normal. Essa estatística provavelmente mistura desorganização e subqualifi cação. (Dwyer, 2006: 203)
33O quarto e último nível apresentado nesta teoria sociológica dos acidentes é o único nível não-social e é designado por indivíduo-membroO seu cariz está centrado numa “sociologia do sujeito”, que defende que o indivíduo detém uma certa autonomia para agir, independentemente dos constrangimentos impostos pelas relações sociais e organizacionais. Metaforicamente, é a parte do traba­lhador que se consegue “libertar” da influência dos três grandes níveis sociais descritos anteriormente. No fundo, será o reconhecimento por parte da teoria sociológica de Dwyer que existem factores não sociais susceptíveis de infl uen­ciar a ocorrência de acidentes de trabalho. Um dos aspectos importantes desta dimensão está relacionado com a tentativa de explicar a ocorrência de “aciden­tes” provocados por autolesão (actos intencionalmente fomentados pelo traba­lhador) ou por outro tipo de acções de natureza individual. Recorrendo a alguns exemplos, Dwyer tenta explicar qual a importância do nível indivíduo-membro no seio das relações de trabalho, ao afirmar que:
O trabalhador expressa-se de forma individual ao chegar ao local de traba­lho contente, porque talvez tenha acabado de ganhar um lho ou por estar into­xicado. O trabalhador pode agir individualmente em um dos níveis sociais para reforçar o seu poder ou o do patrão nesse nível. O indivíduo que sabota a linha de montagem, o que organiza clandestinamente um sindicato ou o que viola as nor­mas de produtividade coletivas numa fábrica que paga por produção, todos eles expressam dimensões diferentes desse nível de realidade. O sabotador recusa-se a aceitar o controle de seu ritmo de trabalho imposto pela linha de montagem. O sindicalista busca contestar coletivamente o poder de controle de seus patrões. O violador das normas coletivas tenta aumentar seus ganhos aceitando as defi nições do patrão e rejeitando as de seus colegas. (Dwyer, 1989: 27)
34Na teoria sociológica dos acidentes de trabalho proposta por Dwyer é apresentada uma abordagem para a explicação dos acidentes através da obser­vação das relações sociais dentro das organizações. As relações sociais de tra­balho são entendidas como a forma pela qual os próprios trabalhadores gerem o seu relacionamento com o trabalho. Esta perspectiva discute que os acidentes são essencialmente fruto das relações sociais de trabalho e, por isso, só podem ser prevenidos através de alterações em algumas destas relações. Assim, parece pertinente compreender quais são as relações sociais que produzem erros e, por consequência, acidentes. A capacidade de influência de cada um dos níveis refe­ridos pode variar mediante cada contexto ou local de trabalho, dependendo das estratégias de empregadores e trabalhadores. A principal tese desta teoria pre­coniza que quanto maior for o peso de um nível nas relações sociais de trabalho em relação à gestão dos perigos, maior será a proporção de acidentes causados por esse mesmo nível.
35Apesar de a teoria sociológica de Dwyer considerar os quatro níveis, refe­ridos na figura 1 como os mais importantes para a compreensão e explicação da maioria dos acidentes de trabalho, ela não deixa de reconhecer a existência de outros aspectos interessantes para um melhor entendimento acerca da pos­sível complexidade multicausal dos acidentes de trabalho, incorporando alguns resultados validados em outros estudos empíricos. É verdade que Dwyer tra­balha com a ideia de monocausalidade dos acidentes (causa principal ou fun­damental), devido a este aspecto facilitar a questão da responsabilização, ou seja, tenta evitar a diluição da responsabilidade provocada pelas teorias que se baseiam na multicausalidade. Autores como Reason (1990; 1997), Rasmussen (1997), Perrow (1999) e Hollnagel (2004) defendem que os acidentes podem resultar da articulação simultânea ou sequencial de vários factores ou causas. Isto significa que as causas podem estar, por exemplo, ligadas em rede e que só a sua articulação permite a efectiva ocorrência de determinado evento. Por outras palavras, a teoria de Dwyer (2006: 235-236) reconhece explicitamente a interli­gação entre os níveis da realidade social e diferentes relações sociais na produção do acidente, mas procura forçar os actores sociais a serem responsáveis pelas suas escolhas, de modo a que isto permita determinar “a causa” do acidente. Todavia, esta perspectiva acaba por, em certos casos, limitar a análise de outros factores, que podem igualmente contribuir para a ocorrência dos acidentes.
36De seguida iremos apresentar alguns destes aspectos que acabam por se tornar relevantes para o esclarecimento dos acidentes de trabalho, enquanto fenómenos sociais complexos, bem como para ampliar as fronteiras da própria teoria sociológica dos acidentes.




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